Raspando, como se diz, numa vitória muito apertada que revela um país dividido, a reeleição da Presidente Dilma Rousseff encerrou a festa da Democracia brasileira. O povo compareceu às urnas com maturidade e disciplina e o sucesso do nosso sistema eletrônico confirmou-se mais uma vez em sua eficiente celeridade. Às 20 horas e quinze minutos já tínhamos o resultado completo das eleições iniciadas às oito da manhã. Motivo de orgulho, sem dúvida, para todos nós.
Dilma Rousseff encarna um dos paradoxos do nosso estranho país. Talvez seja a única presidente do mundo que só passou pelo processo eleitoral duas vezes: a primeira, há quatro anos, quando Lula, após seus dois mandatos na presidência fez dela a sucessora; e a segunda, neste 26 de outubro de 2014, após a mais acirrada, a mais violenta e a mais deselegante campanha eleitoral da história do Brasil. No primeiro turno, sob a regência de um marqueteiro sem ética e sem escrúpulos, o PT se empenhou na “desconstrução” da candidata do PSB, que substituíra Eduardo Campos, tragicamente morto no até hoje não explicado desastre de avião; no segundo turno, afastado o perigo da candidatura de Marina Silva, tudo indicava que seria mais fácil desacreditar o candidato Aécio Neves, do PSDB, na velha polarização que rotula imediatamente o adversário como neoliberal ou de extrema direita, elitista e inimigo dos pobres, para começo de conversa. Mas, como disse Miriam Leitão em artigo do Globo de ontem: “os métodos do marketing da presidente Dilma foram eficientes do ponto de vista eleitoral (…) mas enfraqueceram a democracia. A estratégia do marqueteiro João Santana foi a de fazer ataques violentos e sistemáticos a tal ponto que ao oponente só restasse se defender. Marina teve que explicar que não era um novo Collor, que não acabaria com o Bolsa Família, que não entregaria o país aos banqueiros, entre outras barbaridades. Aécio teve que enfrentar estas e outras acusações descabidas e ataques à sua vida pessoal.” E um comentarista do Le monde lembrou que entre outros absurdos, afirmou-se que Marina Silva representa “ a nova direita criada por Washington” quando todos sabem que o PSB e ela fizeram parte durante muito tempo da ala esquerda do governo Lula, que teve como aliados também PP, PMDB, PR e PSD muito pouco “de esquerda”. E vários cientistas políticos afirmam que os bancos jamais foram mais favorecidos do que nos últimos 12 anos de lulopetismo.
Deixemos, porém, esses assuntos para falar no que a campanha esqueceu, lamentavelmente, de discutir: propostas e ideias para enfrentar os problemas tão prementes da nossa realidade.
E eu me permito imaginar uma carta escrita por aquela menininha de nada, que o poeta Péguy chamou de Esperança, para que a presidente reeleita lesse com muita atenção. Em primeiro lugar, escreveria sobre o Analfabetismo e a Educação: o estado de abandono em que se encontram milhares de escolas, a precariedade do ensino e o desrespeito sistemático aos professores mal pagos, desprotegidos, mal orientados; sobre a situação de desespero em que se encontram milhares de Aposentados, vendo suas pequenas pensões minguarem cada vez mais e sempre abaixo da inflação; sobre o vergonhoso tratamento que recebem os presos, na maioria pobres e pretos, amontoados em celas imundas, em muitos casos abandonados por meses e anos sem julgamento; sobre o Saneamento Básico das periferias das grandes cidades (e das próprias cidades) e de tantas regiões remotas e esquecidas; sobre a Saúde Pública, com seus hospitais abarrotados de gente que morre nos corredores à espera de atendimento; sobre o Transporte Coletivo insuficiente e quase sempre de má qualidade; sobre a questão da descriminalização do aborto, que enquanto não chega mata 20.000 mulheres por ano; sobre a urgência do combate à homofobia e a legalização do casamento gay; sobre a prostituição infantil e a pedofilia; sobre a violência que sofrem milhares de mulheres e crianças no âmbito doméstico e fora dele….Penso que a carta da menininha se alongaria e multiplicaria como os cahiers de doléances da pré revolução francesa.
Mas há uma “ordem de questões” ainda mais grave e premente que foi abordada por meu amigo José Miguel Wisnik, em seu belo artigo de 17 de outubro, também no Jornal O Globo. Trata-se do desrespeito à Natureza que explica o problema da Seca que estão enfrentando vários estados da União. Citando uma entrevista de um professor da PUC de Goiás, Altair Sales Barbosa, Wisnik explica que “o coração do sistema fluvial brasileiro, envolvendo do rio São Francisco à bacia amazônica, e daí à do Paraná, é o Cerrado. (…) Do Cerrado saem as nascentes da maioria das bacias hidrográficas do continente. (…) O Cerrado é o Matusalém dos biomas. Enquanto a Amazônia tem três mil anos de formada, e a Mata Atlântica, sete mil, o Cerrado tem quarenta milhões. (…) chegou a ser o maior viveiro de espécies florais do planeta.” E a vegetação nativa tem “ a maior parte da sua estrutura dentro da terra, como uma verdadeira floresta invertida. Por suas raízes são alimentados os lençóis freáticos e os lençóis artesianos dos aquíferos, cuja carga interna aflora, por sua vez na forma das nascentes dos rios.” A explicação continua : “Essa respiração hídrica veio sendo sufocada (…) pela introdução de gramíneas para o pastoreio, pela expansão da fronteira agrícola (…) pela ação dos fertilizantes, (…) dezenas de pequenos rios vem desaparecendo, enquanto as nascentes dos grandes rios estão secando(…) O esvaziamento a olhos nus das represas que abastecem São Paulo teria seu correspondente literalmente mais profundo no esgotamento invisível dos reservatórios subterrâneos, que deu seu sinal emblemático (…) com o estancamento da nascente do São Francisco.”
Esse estancamento aconteceu há poucos dias. Mas os eleitores não ouviram falar nisso. O candidato do Partido Verde, que pouca gente levou à sério, nem teve tempo de revelar outras mazelas que enfrenta a Mãe Natureza. Marina Silva, a única que poderia ter introduzido a discussão de questões graves como essas “foi bombardeada pelos drones confusionistas de Dilma.”
Mas a menininha de Péguy volta a pedir à presidente Dilma, que se disse mãe e avó, numa de suas aparições eleitorais, que não esqueça a sua descendência nem a de seus compatriotas e a de seus semelhantes do mundo inteiro. As questões climáticas e ambientais são absolutamente incontornáveis.
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