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CARTA DO RIO – 21 – por Rachel Gutiérrez

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No sábado, dia 18, participei do 6º Seminário A Mulher na Música, dedicado às Compositoras, que o Sindicato dos Músicos do Estado do Rio de Janeiro realizou no Memorial Getúlio Vargas, espaço cultural subterrâneo que ocupa aproximadamente 1800 metros quadrados da Praça Luis de Camões. Situado no aprazível bairro da Glória, às margens do Parque do Flamengo e perto de uma das preciosidades da nossa arquitetura colonial: a Igreja do Outeiro, o Memorial, que conta a vida do ex-presidente brasileiro mais popular, utiliza painéis fotográficos e vários meios multimídia para cultuar e expressar a sua imortalidade. Destoa, na entrada, diante das escadas que conduzem ao subterrâneo, uma imensa cabeça de Getúlio, de extremo mau gosto, comparável apenas às grandiosas estátuas do fascismo italiano.

Mas o ambiente interno é agradável, funcional e acolhedor.

Para tristeza dos cariocas, porém, quase ao lado, uma obra de reforma, imposta ao tradicional Hotel Glória, e irresponsavelmente interrompida, mancha a paisagem com seus andaimes sujos depois que a megalomania do ex-bilionário Eike Batista decidiu interferir e modificar a beleza de outro tipo de arquitetura nossa, moderna, mas igualmente preciosa. O resultado foi catastrófico. Deveríamos exigir do próximo governo a retomada da obra para reconstituir e restaurar o prédio do hotel que durante décadas tanto embelezou aquela região da cidade.

A vida é dialética e o Brasil é conhecido como o país dos contrastes. Contando com participantes de vários estados e um músico do Peru, o Seminário foi um sucesso e para minha grande alegria, consagrou sua realização à memória de Esther Scliar, (1926-1978), minha querida amiga e luminosa professora de gerações de músicos de todas as áreas, como o regente John Neschling, o compositor popular Edu Lobo e, entre muitos outros, o grande e saudoso saxofonista e clarinetista Paulo Moura. Incontáveis foram seus alunos nos Seminários de Música Pró-Arte e imensa é a saudade que deixou.

Reproduzo um pouco o texto do programa: “Pianista, compositora, regente e musicóloga, Esther Scliar desenvolveu importantes trabalhos no campo da análise musical e percepção (…) Além de seu profundo conhecimento, esteve sempre aberta às transformações por que a música passou no século XX, incorporando-as a todas as áreas em que atuou, firmando-se como musicista na vanguarda de seu tempo.” Esther pertencia a uma família de artistas ilustres do Rio Grande do Sul. Sua irmã, catedrática da USP (Universidade de São Paulo), é a conhecida poeta Leonor Scliar-Cabral; um de seus primos foi o pintor Carlos Scliar; outro primo era o escritor Moacyr Scliar.

E em homenagem à grande compositora, a Associação de Canto Coral, apresentou duas de suas belas Cantigas.

Minha participação foi, como brinquei, a de uma “mulheróloga” e não a de musicóloga, que não sou. Limitei-me a contar um pouco as vicissitudes de compositoras como Germaine Tailleferre, ( 1892- 1983), que pertenceu ao Grupo dos Seis franceses, muito atuantes nas décadas de 1920 e 1930, músicos contemporâneos de grandes vanguardas das artes que também inovaram e contestaram o academicismo, mas que são menos conhecidos do que os artistas plásticos. Tailleferre, que muito sofreu em seus dois casamentos por não contar com o apoio de nenhum dos maridos, tem uma obra vasta, interessantíssima, infelizmente muito pouco conhecida e quase nunca apresentada nas salas de concerto. Não se ouve falar em suas óperas, operetas, balés, concertos para harpa e orquestra, para piano, dois pianos ou guitarra e orquestra, centenas de obras para voz, para sopros e música de câmara. No Seminário, tivemos a oportunidade de ouvir gravações de uma peça para dois pianos: Jeux en plein air e um Concerto para Harpa e Orquestra.

Menos conhecida ainda é a obra de Fanny Mendelssohn Hensel, ( 1805- 1847) , irmã do famoso Félix Mendelssohn-Bartholdy, cujo pai, o poeta Abraham Mendelssohn promoveu muito o filho homem , mas não permitiu à filha mulher que executasse em público suas músicas e nem sequer que fizesse editar suas partituras. Uma anedota conhecida é a que revela o constrangimento de Félix numa visita que fez à Rainha Vitória, no Palácio de Buckingham. A rainha, grande mapreciadora da música de seu tempo e, em especial, de música para voz e piano que gostava de interpretar, pediu que o compositor a acompanhasse em uma de suas canções. Mendelssohn sugeriu então várias delas, mas Vitória disse que sua predileta era Italien. Sem nada dizer, o músico se viu obrigado a acompanhar a rainha numa das muitas canções de autoria de sua irmã, Fanny, que ele publicara como sendo sua.

É de propósito que estou evocando na ordem inversa as grandes compositoras que apresentei porque, sem dúvida, a mais impressionante delas é Hildegard von Bingen, a monja medieval que viveu à margem do Reno (1098 – 1179) e esperou quarenta e três anos para revelar suas visões, intuições, seus extraordinários conhecimentos científicos e sua produção poética e musical. Ela temia não ser compreendida. Não sem razão: sua concepção do mundo era a de um Universo em expansão, sua percepção do valor medicinal das plantas a tornaria a criadora de uma medicina natural que foi redescoberta e aplicada no século XX, quando sua extensa criação musical também começou a ser estudada e difundida. Gênio múltiplo, polifacético e polivalente, a fascinante Hildegard só foi elevada à categoria de Doutora da Igreja por Bento XVI, o papa emérito predecessor do atual Papa Francisco. Ouvimos dela um trecho de uma espécie de oratório, ou auto religioso: Ordo Virtutum, um dramático diálogo musical entre a alma, as virtudes e o Demônio. A reação do público foi de espanto e entusiasmo.

Mas o Seminário teve seu ponto alto quando ouvimos os depoimentos de três compositoras vivas, nossas contemporâneas, à mesa moderada por Salomea Gandelman, professora da UniRio. As compositoras são duas cariocas e uma paulista: Marisa Resende, Vania Dantas Leite e Silvia de Luccca. Esta última focalizou especialmente a dificuldade de ser mulher compositora (de música “clássica”) em nossos dias, como ao longo da história. Vania Dantas Leite é a que mais se dedica à música eletrônica e experimental. Marisa Resende lembrou as barreiras que ainda enfrentam muitas mulheres para participar das Bienais de Música Contemporânea e, quando conseguem fazê-lo, os empecilhos que impedem suas obras de serem ouvidas mais de uma vez. Concordaram em que há pouca procura dos Cursos de Composição e Contraponto pelas alunas, e atribuem o fato à falta de estímulo de familiares ou mesmo dos professores. Em pleno século XXI, o que ainda se espera das moças é que desabrochem como boas mães e donas de casa, ou, no máximo, professoras.

Não faz tanto tempo que Gustav Mahler obrigou Alma Mahler (1879 – 1964), sua mulher, a jurar que a partir do dia do noivado não mais comporia música e iria dedicar-se exclusivamente a ele, à casa e aos filhos que viessem a ter.


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