Voltemos ainda à versão tardia do mito, na qual Narciso buscava nas águas a imagem da irmã morta, talvez a verdadeira anima do poeta. Pois, se continuamos a ouvir Bachelard e admitimos que o devaneio, sem jamais confundir-se com ela, é uma das fontes da poesia, podemos dizer que a anima, tanto no homem quanto na mulher, é a habitante privilegiada dessa fonte. E para Lou Salomé, a sensibilidade criativa é essencialmente feminina. De modo estranho, porém, ela deixa de citar em seu trabalho os dois quartetos do poema de Rilke que parecem aludir à irmã de Narciso.
Was sich dort bildet und mir sicher gleicht
Und aufwärts zittert in verweinten Zeichen,
Das mochte so in einer Frau vielleicht
Innen entstehn; es war nicht zu erreichen,
(wie ich danach auch drängend in sie rang).
Jetzt liegt es offfen in dem theilnahmslosen
Zerstreuten Wasser, und ich darf es lang
Anstaunen unter meinem Kranz von Rosen.
– – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – –
O que se forma e se assemelha a mim
E treme como lágrimas subindo,
Talvez numa mulher pudesse assim
Surgir, embora sempre inalcançável
(por mais que a ela eu me inclinasse).
Repousa agora sob a água esparsa,
Distraída, e de rosas coroado
Posso eu longamente contemplá-la.
Na busca da intangível imagem da irmã amada em seu próprio reflexo, Narciso está, na verdade, à procura de sua anima, – sua alma ou sensibilidade de poeta – uma ninfa que habita os bosques, as montanhas e os vales férteis, os mares, os rios e as fontes, os rochedos e as grutas; ou uma ondina caprichosa, que permanece quase sempre nas profundezas do lago e só quando quer emerge para encantá-lo.
O triste Narciso precisa ultrapassar a morte para renascer como flor a cada primavera. Sim, Narciso é um melancólico, perseguido pela morte. Sua consciência do Todo o leva a ver a morte ao lado da vida, essa irmã que se esconde em seu reflexo. Por isso Narciso sabe decifrar o mundo. Como diz Susan Sontag, em Sob o Signo de Saturno , exatamente porque o caráter melancólico é perseguido pela morte, são os melancólicos que melhor sabem decifrar o mundo. Ou melhor, é o mundo que se rende à minuciosa investigação do melancólico, como não se rende a ninguém mais.
Portanto, é bom que as pedras e os seixos estejam parados, “mortos” no fundo do lago. Narciso precisa de silêncio e quietude para fazer da morte vida, estendendo a sua própria vida para muito além, e sendo ele mesmo recriado por aquilo que cria.
Contudo, por mais melancólica que seja a contemplação de Narciso, ele é um ser destinado à alegria, à alegria da criação. E a conversão narcísica em criação artística inclui, além do trabalho da imaginação, a necessidade de seduzir . Narciso precisa – é uma imposição de seu destino! – mostrar ou dizer o que viu e, ao fazê-lo, mostra também a si mesmo.
Após o mergulho do olhar nas profundezas do lago, o contemplado floresce em cores e formas. O contemplado, isto é, Narciso e o mundo.
* * *
OBRAS CONSULTADAS :
BACHELARD, GASTON
A ÁGUA E OS SONHOS, MARTINS FONTES, S.PAULO, 1989
A POÉTICA DO DEVANEIO, MARTINS FONTES, S.PAULO, 1988
O DIREITO DE SONHAR, MARTINS FONTES, S.PAULO, 1985
L’INTUITION DE L’INSTANT, DENOËL, PARIS, 1985
GAY, PETER : FREUD, CIA. DAS LETRAS, S.PAULO, 1991
LE RIDER, JACQUES
PREFÁCIO AOS CAHIERS INTIMES DES DERNIÈRES ANNÉES, DE LOU ANDREAS-SALOMÉ, HACHETTE, PARIS, 1983
MODERNITÉ VIENNOISE ET CRISES DE L’IDENTITÉ, PUF, PARIS, 1990
OVIDIO: AS METAMORFOSES, EDIOURO, RIO, 1983
PAZ, OCTAVIO
L’ARC ET LA LYRE, NRF GALLIMARD, PARIS, 1965
A OUTRA VOZ, SICILIANO, RIO, 1990
SALOMÉ, LOU-ANDREAS
CAHIERS INTIMES DES DERNIÈRES ANNÉES, HACHETTE, PARIS, 1983
CARTA ABERTA A FREUD, EDITORA PRINCÍPIO, SÃO PAULO, SEM DATA
& RAINER MARIA RILKE – CORRESPONDANCE, NRF, GALLIMARD, PARIS, 1985
IN DER SCHULE BEI FREUD, KINDLER VERLAG, MÜNCHEN, 1965
L’AMOUR DU NARCISSISME, NRF GALLIMARD, PARIS, 1980
MA VIE, PUF, PARIS, 1977
RAINER MARIA RILKE, MAREN SELL, PARIS, 1989
SONTAG, SUSAN: SOB O SIGNO DE SATURNO, L&PM, PORTO ALEGRE, 1986
VINGE, LOUISE: THE NARCISSUS THEME IN WESTERN EUROPEAN LITERATURE UP TO THE EARLY 19TH CENTURY, GLEERUPS, NEW YORK, 1967
Filed under: Literatura Tagged: carta do rio, criação artística, narcisismo, rachel gutiérrez
